Quando publiquei a receita destes rebuçados de tangerina, despertou em mim a vontade de escrever este conto. As personagens e os cenários começaram a desenhar-se  e gostei principalmente do facto de ter deixado a narrativa fluir ao sabor da inspiração e das vontades. Faz este mês um ano que o escrevi. Hoje deparei-me com uma pasta onde tinha guardado o texto e resolvi partilhá-lo com quem tiver a paciência de o ler.

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Rebuçados de Tangerina

Era conhecida como a Ana dos Rebuçados. Tinha voltado ao campo depois de quatro anos de vida na cidade grande. Lisboa ficara para trás. A vida por lá não lhe correra como o esperado. Voltara então à aldeia. Sozinha. O casamento não dera certo. A cidade mostrara-se demasiado avassaladora nos horários e nas tentações. Não gostara do prédio para onde fora viver com o marido: uma única assoalhada numa cave pouco iluminada humildemente decorada pelo castanho dos móveis velhos e pelo branco-esverdeado do bolor que se desprendia das paredes em jeito de fios de cabelo. Os vizinhos eram barulhentos e as pessoas desbotadas na cor. Sentia o perigo e o medo nos olhares que se cruzavam com o dela nos circuitos dos transportes públicos, crivados de gente cinzenta, muda, e de corpos sem expressão, que se limitavam a respirar através dos filtros dos ares-condicionados. Bastara.

Regressara com a única mala que levara quando partira, vazia de conteúdo mas cheia de sonhos. Vivia na casa que fora sempre dos seus avós e que depois fora herdada pelos seus pais. E fazia os rebuçados de tangerina mais perfumados da vizinhança. Do antigo pomar, amavelmente cuidado por um vizinho, recolhia os frutos necessários, e da sua cozinha, à antiga, saía a sua fonte de sustento: os rebuçados.

Começava a prepará-los de madrugada. A aldeia acordava com o cheiro dos citrinos. O aroma que emanava da raspa da tangerina fazia antever que estes rebuçados seriam os meus eleitos. Comprava-os na mercearia da D. Balbina. Nunca tive coragem de os adquirir diretamente à Ana. Tínhamos sido colegas de carteira na escola primária e por sempre nutrir uma admiração por ela, nunca consegui que o nosso relacionamento fosse o de franca amizade. Guardei-a comigo na esperança de um dia ter coragem para exprimir o que sentia. O José fê-lo primeiro. O José levou-a ao altar. Eu não.

A adição de vinagre no tacho propagava pela cozinha um odor forte. E eu sentia-o ao passar perto da janela. A Ana estava ao fogão de avental posto e mangas arregaçadas, pronta para aceitar mais um dia. Enquanto o açúcar se esforçava por atingir o ponto de rebuçado, o líquido borbulhante emitia calor para a mão direita da cozinheira que, com a ajuda da colher de pau, ocasionalmente mexia os ingredientes. Estava frio. Sentia-o. Talvez o dia mais frio desse ano. Era, sem dúvida, o dia mais acertado para a cozinheira fazer os rebuçados caseiros. Os pés desta, pequeninos nos chinelos demasiado grandes, permaneciam enregelados junto ao fogão, mas as mãos, essas, anteviam momentos quentes. Imperava a premonição  do tacto. De seguida, vinha a bolha morta e a necessidade de colocar umas gotas do preparado numa taça com água e apertá-las com o polegar e o indicador para constatar a união dos ingredientes. E eu via o princípio do tacto, do lado de fora da janela. Acendia um cigarro e fingia que debaixo do beiral me protegia da chuva que começava a desenhar-se no ar tracejado.

Ao cair na água que a taça continha, o tinir do aspirante a rebuçado constituía-se como a palavra mágica. A cozinheira untava agora com óleo a superfície de um prato e fazia escorrer outras tantas gotas generosas por entre os dedos das mãos. O óleo facilitaria o molde e protegeria as mãos do calor escaldante. Ela sabia-o. Tinha-lho ensinado a avó quando já era mocinha. O rebuçado era agora levantado sabiamente do prato, com a ajuda de uma faca, e dançava entre os dedos da Ana, que o esticava, enlaçava e deslaçava e que o atirava ao ar para sentir o fresco momentâneo da sua não presença. De volta às mãos hábeis, o rebuçado era novamente puxado, e mais uma vez torcido, até ganhar a cor e a identidade desejadas. E as mãos sentiam este bailado. E as mãos criavam. Sempre as mãos. Sempre o tacto. Sempre a Ana. E eu ali. E a chuva parara. E eu teria de sair dali.

O toque enferrujado da campainha da porta soou. Era o neto da Balbina que, transportando um cesto de vimes, tinha ido, a mando da avó, buscar os rebuçados que iriam alegrar os paladares das gentes da terra. A Ana não ouvira a campainha e o rapaz, de oito anos, não se fazendo rogado, rodou com alguma malícia, a maçaneta da porta. Estava aberta. Caminhou até à cozinha com passos contados, carregando a culpa de quem infringe. Chamou baixinho pela Ana mas a cozinheira permanecia compenetrada no corte e embrulho dos rebuçados. O moço empurrou suavemente a porta envelhecida da cozinha. O chiar das dobradiças centenárias não fez com que Ana despertasse para o intruso. De costas, e ligeiramente curvada sobre a mesa da cozinha, fazia desfilar pelo papel celofane uma tesoura paciente e recortava languidamente quadrados precisos, sem recurso a réguas matemáticas. Envolvia, de seguida, cada rebuçado no seu invólucro como se de um tesouro bem guardado se tratasse. Hoje imperava o amarelo. Eram os meus rebuçados de tangerina.

Custava três euros o saco, mas, quase sempre, o neto da D. Balbina vendia todos os embrulhos antes de chegar à mercearia da avó, com quem vivia desde pequenino. As pessoas avistavam-no com o cesto e já sabiam que vinha de casa da Ana. Eu comprava-lhos sempre. Era parte do tempo e da dedicação da Ana que estava dentro daqueles saquinhos coloridos. E o rapazola adorava chegar à avó com a missão cumprida. Sabia, o espertalhão, que o saco reservado no bolso do casaco era a meta de tão voluntarioso trabalho. E, depois, seguia caminho, aos saltos, à procura de ideias para pregar partidas a este ou àquele que se lhe atravessasse no caminho, quer fosse pessoa ou animal. Era reguila. Escolhia o caminho mais longo para a escola e utilizava sempre argumentos imaginativos para justificar atrasos e incumprimentos. Apesar disso, todos na aldeia admiravam a tenacidade física e a agilidade de pensamento do rapazito. Ana nutria muito afeto por ele. Admirava o registo infantil e a sua genuína alegria de viver. Qualquer dia havia de perguntar-lhe se gostaria de aprender a fazer rebuçados. Ensinar-lhe ia de bom grado todos os passos da receita. Perpetuar-se-ia assim na memória daquele menino.

Ana era filha única e criança nascida fora de tempo. Agora com trinta e cinco anos restava-lhe a mãe viúva que vivia com a tia, Jacinta, que por opção do destino ficara solteira. A casa onde vivera com o marido reservava-se muito grande só para si. A cada canto vislumbrava uma memória saudosa que a acolhia. Para Ana, a decisão de voltar para a aldeia, e para a antiga casa dos pais representava a única coisa que naquele momento era certa, aquilo que fazia sentido. Os rebuçados significavam o outro rumo: o sustento da sua existência. Não pensava no futuro. Estava bem assim. Tinha a casa, a horta das traseiras, o curral, o galinheiro e o pomar. Tinha o silêncio da aldeia e o ar fresco da madrugada que a incentivava a diariamente acender o lume, a esperar pelo ponto de rebuçado e a conferir aromas e formas ao açúcar elástico. Preenchia todos os dias, até à hora de almoço com esta labuta metódica e artística. E pensava que tinha todos os ingredientes para ser feliz.

A aldeia amanhecera com a notícia que o neto da D. Balbina tinha subitamente adoecido. Desconfiava-se de febre da carraça. As vizinhas da velha merceeira afirmavam que a doença do rapazinho era vingança da própria natureza. De tanto fazer mal aos animais teria contraído uma carraça de algum cão de rua ao qual teria esganado o pescoço para ouvir o ganir de desespero do canino.

 A Ana estranhara a demora do miúdo e resolvera levar naquele dia, ela própria, os rebuçados. Quando entrou na mercearia reparou que havia muita agitação. Todos os locais presentes comentavam os possíveis diagnósticos da condição do neto da D. Balbina. A Ana fez sinal à merceeira que, por uma porta de ligação entre a casa e a mercearia, regressava ao trabalho, depois de verificar o contínuo estado febril do neto. Ambas conversavam, agora com ar de pesar, e eu observava-a de um dos cantos mais escuros da loja. Coincidíramos ali.

Via-a agora de perfil. Sempre esbelta, fresca e simples nos trajes. Trazia ainda o avental azul vestido. Com a pressa esquecera-se de o retirar e pendurar atrás da porta da cozinha, como fazia todos os dias depois de embrulhar e colocar em saquinhos os rebuçados reluzentes.

Não havia médico na aldeia e a população juntara-se para entre todos angariarem o dinheiro necessário para mandar vir o médico e pagar as despesas da consulta e dos medicamentos. Ana quis, desde logo, liderar a iniciativa. Organizaria naquela noite um jantar comunitário no salão de festas da igreja. Os homens preparariam o espaço com cadeiras e mesas que se amontoavam enfarinhadas por teias na despesa do salão. As mulheres cozinhariam a ceia e confeccionariam os doces para serem arrematados depois do jantar.

O relógio da igreja marcava as seis da tarde e da cozinha improvisada no salão da igreja viajavam aromas distintos emanados pela combinação de temperos e conduzidos pelas correntes de ar. De início, era o cheiro a louro e a cebola refogada. Depois, destacava-se o fumado dos enchidos, e, por fim, o aroma proveniente das carnes.

Diretamente dos dois potes de ferro saía, agora, para os pratos das cinquenta pessoas que habitavam a aldeia, a tradicional feijoada. Apenas o neto da D. Balbina e dois idosos, todos adoentados, não se puderam juntar à festa. Ana correu a servir-lhes diligentemente o jantar. Dentro do salão, todos elogiavam a comida, que seguia em tabuleiros acompanhada de fatias grossas de pão de trigo, ainda morno, cozido no forno de lenha da D. Balbina. Ia começar a arrematação das sobremesas e todas as pessoas, de acordo com as suas parcas posses, faziam subir o preço deste ou daquele bolo feito para a ocasião com os melhores ovos caseiros de cada galinheiro. O arrematador era o meu pai. Tirava agora da prateleira de doces uma cesta forrada com um pano de linho com rebordo a renda. Estava repleta de rebuçados de tangerina. Teriam de ser meus. Pensei.

Ana reparava na forma efusiva com que eu fazia crescer o valor da cesta de rebuçados. Ela sabia, agora publicamente, a minha predilecção pelos rebuçados dela e olhava para mim. Via-me. Sem que desse conta, a tia da Ana cobrira o valor que eu antes tinha proposto e sem que houvesse mais nada a fazer o meu pai, entregou-lhe a cesta. Todos repararam no meu olhar de desânimo até que a Ana se aproximou de mim e, pela primeira vez desde que tinha voltado da cidade, falou comigo.

– Olá António! Amanhã faço novos rebuçados. Passa por lá perto da hora de almoço. Por essa altura já os terei preparado em saquinhos – afirmou com voz suave e assertiva- e dirigiu-se para um grupo de mulheres que começavam a recolher a loiça do jantar.

Nem me lembro se agradeceu. Disseram que o viram a acenar a cabeça. Eu estava petrificado e entorpecido.

Não dormi a noite toda. Ainda não eram dez horas quando vi chegar o carro do médico. Dirigia-se com passo apressado para casa da merceeira. O calor começava a fazer-se sentir e os aldeões regressavam das hortas e dos campos de gado. Tinham saído cedo, pela fresca, e eu com o espírito sempre ocupado com um único pensamento, sabia que tinha também de ir tratar do gado e de regar a horta. Faria isso tudo mais tarde.

Lavei-me, vesti-me e saí à rua. Cruzei-me com o médico que já regressava de casa da D. Balbina. Interpelei-o sobre o estado de saúde do neto da merceeira. Tinha uma pneumonia, mas escaparia, de acordo com as palavras do médico. Descansei. A natureza tinha-se condoído do miúdo, talvez por apenas existirem três crianças na aldeia ou por já se ter habituado às traquinices do moço e não se conseguir imaginar sem a presença do rapazinho.

O relógio do campanário registava onze horas e a minha ansiedade impedia-me de esperar pela hora de almoço. Tinha o convite para ir a casa da Ana e sabia que mais importante do que os rebuçados era a oportunidade que teria de conversar com ela. Quando me preparava para bater à porta, ouvi uma voz que vinha lá de dentro. Era a voz grave de José.

Naquele momento, percebi que meus eram apenas os rebuçados de tangerina. E regressei a casa.

3 Replies to “Rebuçados de tangerina…em conto”

  1. Oh linda… tens jeito para escrita! Também eu tenho um conto, guardado, aguardando a coragem de mostrar. Um conto infantil que fala de amizade 🙂
    Gostei de ler, querida. Escreve mais 🙂
    E os rebuçados…não sei se tenho coragem sequer de tentar…
    Gostei muito 🙂
    Beijos enormes
    C

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  2. Olá!
    Amo a escrita e não podia deixar de ler este conto. Quando a leitura me encanta, deixa-me com uma suave paz interior. Tanbém gosto muito de escrever, ou narrar vivências, como lhe chamo. Sou um terror com a pontuação, mas não desisto.
    Só faltou o rebuçado para acompanhar a leitura. Ficaram maravilhosos.
    Beijinho

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  3. Parabéns, Patrícia pela tua veia literária! Adorei o teu conto. Está muito bem imaginado e estruturado, o que nem toda a gente consegue.
    Quanto aos rebuçados, devem ser maravilhosos, ricos em aroma e sabor, mas muito trabalhosos. Se um dia for aos Açores vou ter de procurá-los!
    Bjs. Bombom

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