Senti o toque da campainha. Não poderia antever quem fosse. Pouco passava das seis da tarde. Ainda de fato de treino e sapatilhas fui à porta. Para minha surpresa a convidada chegara duas horas mais cedo.
– Boa tarde, Miss Dahl, queira fazer o favor de entrar, disse-lhe ainda com a mão na porta e com “não estou minimamente apresentável” sempre a povoar-me o pensamento. O que fazer? O que dizer? Como vou justificar ainda não ter começado a fazer o jantar? Mas este só estava marcado para as oito!
Com estas questões a distorcerem-me o raciocínio, resolvi dizer-lhe:
-Seja bem-vinda à minha casa.
– Foi com prazer que aceitei o seu convite – disse Miss Dahl
Naquele momento fiquei sem saber se devia conduzir a minha convidada à sala de estar ou à cozinha. Se ficasse à conversa na sala, quando começaria o jantar?
Miss Dahl leu-me os pensamentos e disse:
-Peço desculpa por ter chegado tão cedo. O lançamento do livro foi antecipado, a sessão de autógrafos não se prolongou por muito tempo, por isso resolvi apanhar um taxi e vir até cá o que, confesso, não foi muito fácil porque o taxista não falava inglês.
– Is there any inconvenient? -perguntou.
– Not at all, respondi-lhe.
Enquanto nos afastávamos da porta, Miss Dahl abriu um saco e entregou-me um embrulho.
– Para si- disse – como forma de agradecimento pelo convite que me fez.
Agradeci timidamente e, com cuidado, abri o papel que envolvia o objeto: As Voluptuosas Receitas de Miss Dahl.
Abri o livro e reparei que tinha uma dedicatória: To Patrícia, that your cookings keep challenging seasons and imagination itself. Sophie
Por momentos fiquei sem palavras. Tinha à minha frente Sophie Dahl com os seus resplandecentes olhos azuis, cabelos dourados e sorriso doce.
– Importa-se que mude de sapatos?- perguntou. Estes saltos matam-me! O que não dava agora para ter as minhas wellies! Por acaso não tem um chinelos que me empreste? Preciso de estar confortável porque hoje sou eu que cozinho para si. É o mínimo que posso fazer por ter chegado mais cedo do que o previsto.
Por instantes fiquei novamente sem saber o que dizer, mas vi-me forçada a aceitar a proposta, afinal, nada ainda estava feito. Enquanto fui buscar o chinelos pensei que poderia aproveitar o momento para trocar de roupa, mas não me saía da cabeça que tinha Miss Dahl na minha sala e à espera de um chinelos?! Belisquei-me várias vezes no percurso de regresso. Era mesmo real. Não a queria fazer esperar. Apressei-me.
Assim que trocou de sapatos deu um suspiro de alívio e disse:
-Pronta para me mostrar os cantos da sua cozinha?
– Com certeza Miss Dahl, disse-lhe prontamente. Trate-me por Sophie – pediu. E a partir daquele momento nunca mais pensei que tinha um velho fato de treino vestido e o cabelo apanhado em jeito de rabo-de-cavalo.
Fomos até ao frigorífico. Abrimos a porta e espreitámos lá para dentro. Não me atrevi a dizer nada nem a contrariar os desejos que pudessem vir da chef. Segurei num punhado de coisas que Sophie me ia passando e dirigimo-nos até à bancada.
– Como entrada vou fazer uma sopa. Está-me mesmo a apetecer algo reconfortante, caseiro e com produtos genuínos da ilha.
Enquanto descascávamos os legumes, Sophie ia falando da sua vida: da avó materna, Gee-Gee, com quem aprendeu a fazer bolos e a associar os domingos aos assados no forno de lenha; lembrou-se dos tempos do colégio interno Inglês, das intermináveis festas à meia-noite, tão idênticas às descritas por Enid Blyton; recordou as ceias preparadas pela mãe quando ia a casa de férias; mencionou a luta contra o seu apetite devorador e contra o peso; relembrou umas férias passadas em França onde, conjuntamente com amigas, comeu croissants e bebeu leite gordo com chocolate no mais profundo abandono. Reviveu os tempos em que trabalhou de nanny, de empregada de mesa e de modelo, quando saltitava por Londres, Paris, Nova Iorque e Milão.
– Esta cozinha é fantástica! – dizia-o enquanto abria e fechava gavetas e armários à procura disto ou daquilo.
Do lado de fora da grande porta de vidraça da cozinha, Max, o labrador preto, deitado no chão com o focinho entre as patas, observava todos os movimentos de Sophie com olhos pachorrentos, como se Miss Dahl fosse da família, tão bem integrada que ali estava no nosso espaço, uma cozinha já caótica, desarrumada e deliciosa, porque cheia de vida.

Sopa de abóbora, bróculos e linguiça

Ingredientes (sem quantidades precisas)

Abóbora
cenoura
batatas
brócolos
cebola
linguiça
azeite
sal

Vamos lá a ver se não me escaparam pormenores.

A Sophie fez um leve refogado em azeite com meia cebola pequena. Adicionou as rodelas de linguiça cortadas finamente e deixou estrugir um pouco dando umas voltas à linguiça com a colher de pau.Retirou os pedacinhos de linguiça e reservou-os numa tigela. Tapou. Juntou a abóbora, a cenoura e a batata e envolveu tudo no refogado. Adicionou a água e o sal. Tapou a panela e deixou cozer os legumes. Após estarem cozidos, triturou-os com a varinha mágica. Retificou o sal. Adicionou pequenos arbustos de brócolos e a linguiça reservada. Em lume brando deixou cozer os brócolos.

Ainda a fumegar, servimos a sopa e apreciámo-la agora já em silêncio.


Com este texto e receita participo na 2º edição do desafio Convidei para Jantar… , criado pela Ana, e acolhido pela Suzana do blog Gourmets Amadores.

Patrícia

22 Replies to “Convidei para jantar”

  1. Uma refeição elaborada por nós e com gosto fica sempre bem feita, mas com a ajuda dos nossos amigos torna-se ainda mais saborosa. Hoje, por coincidência, estive a analisar e a ougar “As voluptuosas receitas de Miss Dahl”.

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  2. Patrícia,

    Gostei muito da inversão de quem cozinha para quem, da sopa e, claro, da convidada. Consigo imaginar-vos à conversa e a descascar legumes, com a panela ao lume. Não consigo pensar numa forma mais perfeita de ter a Miss Dahl de visita. Obrigada pela participação!

    Um beijo*

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  3. Isto é que foi sorte. Teres a Sophie Dahl a cozinhar para ti 🙂 Gosto muito do livro e das histórias que conta. Fizeste uma belíssima escolha. A sopa tem um ar belíssimo, bem reconfortante.
    Um beijinho
    P.S.: O meu post deve aparecer amanhã. O almoço foi no sábado, mas ainda não acabei o post. Como sabes, não tenho tido muito tempo 😦

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  4. Vou-te confessar que o meu “calcanhar de Aquiles” na cozinha são as sopas 😦
    Esta que nos trouxeste tem muito bom aspeto… acho que me vou atrever a experimentá-la e, já agora, a lutar contra uma certa renitência que tenho em relação à abóbora na sopa.
    Maria

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  5. Receber uma visita antes da hora já nos deixa numa aflição daquelas, mas receber a Sophie antes da hore nem quero imaginar como ficaste, mas bem que compensou com a bela sopa que “ela” preparou pois ficou com um aspecto hummmm

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    1. Sabes, deu-me muito gozo escrever este texto.Adoraria que ela pudesse vir cá. O inglês nunca seria barreira entre nós, uma vez que é a língua que mais falo durante o dia com os meus alunos, mas há coisas praticamente impossíveis, e ter a visita – mesmo que antecipada – de Miss Dahl é uma delas.
      Fico feliz por teres gostado da sopa que “ela” preparou.
      bj

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  6. Adorei tudo! Desde o texto à receita… e claro à companhia.
    É também uma das minhas chefs de eleição, talvez por me identificar com ela em muitas coisas – até mesmo o chegar mais cedo do que era suposto 😛

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    1. Isso do chegar mais cedo raramente acontece comigo, até porque nunca acho conveniente. Tendo é por vezes a chegar mais tarde, quando se trata de jantares, claro, mas tem a ver ou com preparativos ou com imprevistos. Na minha vida profissional costumo ter pontualidade britânica. Tem de ser.
      Fico feliz por teres gostado do texto e da “minha” humilde receita.
      Um abraço

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  7. Patrícia,
    Descreves na perfeição a formo como eu a imagino ser na sua vida. Acho-o um encanto, não é por ser apenas bonita, mas parece-me tão doce, educada e culta. Vi há uns tempos um programa dela sobre a Mrs Beeton e fiquei a gostar ainda mais desta autora/cozinheira.
    Muito obrigada por teres participado!
    Um grande abraço e até breve.

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  8. Parabéns pela participação Patrícia. A miss Dahl poderia também ser uma escolha minha 🙂 Adoro esse livro, as suas receitas e o bom gosto. A sua simplicidade é contagiante. Adorei o facto de ela querer tirar os sapatos e estar confortável 🙂 E que bela sopa.
    Até publiquei uma receita dela ontem, fantástica esta senhora!
    Um abraço.

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  9. O livro dela não é excelente? Receitas óptimas e saudáveis. Tudo o que nós pedimos! 🙂 Assim como essa sopa, que fica a chamar por mim. Parece ser tão cremosa, e a linguioça deve conferir-lhe um sabor genuino. Love it!
    Tania *

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  10. Olá Patrícia!
    A Sophie é mesmo um encanto, também a adoro! E cheia de sorte que ela está, fartou-se de receber convites, pois eu também a escolhi! 😀
    De certeza que ela adorou ir aí jantar essa bela sopinha, que afinal foi ela que fez confortavelmente calçada com os seus chinelos! E até foi bom ela chegar assim cedinho, puderam partilhar mais uns bons momentos as duas 😀
    Parabéns pela participação!
    Beijinhos

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